Como às vezes
seria tão bom ser pequenina e não (a)perceber nem metade do que está a volta. Onde
os problemas e sentimentos giravam em torno das brincadeiras, das amizades e
pouco mais. Era um sossego grande, do qual só agora se dá conta. Da
preciosidade que isso era. Talvez por isso, se escolha ficar calado em certas
alturas. Não falar o que se sente ou o que se acha sobre algo. Ficar calado
como se não percebemos do que se trata. Como se fossemos crianças. Um modo de
proteção. Um modo de fuga. Talvez seja isso.
estória§158
Tudo parece diferente aqui. Longe da tão grande cidade. Longe do
barulho dos carros, do trânsito, da agitação das pessoas. Longe de um lugar
cheio de ritmo e luz. Aqui é tudo o oposto. Calmo. Muito calmo. [Para dizer a
verdade, calmo demais em certas alturas.] Carros de longe a longe. As pessoas
têm outro estado de espírito. E acaba-se por adoptar tal estado de espírito e
tudo muda. As rotinas são diferentes. Não há horas marcadas. Pode-se fazer o
que quiser, quando quiser. É uma liberdade diferente. E que às vezes é
necessária. É necessário afastarmo-nos da confusão e fugirmos para um sítio
sossegado. E, apesar de não aguentar muito tempo assim, poderia lá ficar esta
semana. Longe da adorada Lisboa. Onde o meu corpo pedia por outro ritmo. Por
outra vida. É necessário. Por vezes isso é necessário. Assim que puder volto
para lá.
estória§157
“Quando se ama, qualquer movimento pode ser em falso e significar
morte imediata. Um suspiro, uma palavra fora do contexto, um gesto desadequado,
um desabafo, até um silêncio podem mudar a rotação da terra e inverter o
sentido dos ponteiros do relógio. Troço
da minha tristeza, pinto quadros que não sei o que são só para ficar exausta,
finjo que não é nada comigo e espero que, um dia, possa sair da reserva e a
minha vida mude, enquanto vou mordendo o silêncio e o desapontamento porque
nunca há respostas na espera. (…) E tentar divertir-me, ir ao cinema como quem
cura uma gripe, respirar fundo e aproveitar o sol de Lisboa. Tenho de aprender
a ser feliz, como se a felicidade viesse em livros de receitas: estenda o seu coração numa superfície polvilhada de farinha, corte em
quatro partes e reserve. Leve o seu desejo ao lume em banho-maria e reserve.
Meta os seus sonhos no forno a 180° e reserve. Mergulhe a sua vontade em vinho
tinto, deixe marinar durante três dias e reserve.”
(MRP)
estória§156
É bom saber que
somos desejados. Queridos. Em algum lado. Por alguém. Dá uma sensação boa.
Faz-nos bem. No fundo, precisamos disso, dessa sensação. Mesmo que não
admitamos, porque o Ser Humano tem dificuldade em admitir isso. Em admitir que
necessita de se sentir desejado. Querido. Amado. Gostado. E, em algum momento
da nossa vida isso pode fazer toda a diferença e mudar-nos a disposição e o
modo de estar. É como chocolate para a alma.
deixa-me-feliz#9
. as meninas pedirem penteados e
unhas pintadas
. sentir-me querida num sítio
. a C. ou a A.C. aparecerem de
surpresa no gabinete com chazinho frio
. saber que gostam de mim
estória§155
Há um ano atrás não diria que estaria aqui hoje. Não diria que a
minha vida fosse esta. Nunca se sabe o que pode vir. Onde poderemos estar. Com
quem poderemos conviver. Aonde poderemos chegar. Novas pessoas entraram desde
há sete meses atrás. Novos locais começam a ser-me tão familiares como a cidade
onde vivo. Novas oportunidades profissionais vieram. Mas não foram só coisas
novas que surgiram. Perderam-se coisas. Pessoas ficaram pelo caminho, numa
estação qualquer em que parámos. Sítios deixaram de ser frequentados. Tempo
livre reduziu. E também houve algumas mudanças. O coração mudou [não sei se
para melhor ou para pior, mas está diferente porque a realidade não é a mesma].
O estilo de vida mudou [e por um lado é bom sinal, por outro é um pouco mau]. As
rotinas alteraram-se. Mas também houve coisas que se mantiveram. É bom manter
algumas coisas. É essencial. Mesmo que não sejam todas as coisas que queríamos que
se mantivessem. Certas amizades mantêm-se. Certos locais mantêm-se. Certos
pensamentos mantêm-se [e que já deviam ter ido].
O tempo, mais as oportunidades que soubermos e conseguirmos vislumbrar
no dia-a-dia, mais a força de querer fazer isso – é o que faz a nossa vida
mudar. Conseguem transformar as nossas vidas. Quem sabe de um dia para o outro.
Nunca sabemos o que poderá acontecer amanhã. Nunca se sabe o que poderemos
esperar ao sair de casa amanhã de manhã.
estória§154
Desapegar. Trata-se disso. Ela sabe-o há tempo suficiente. Mas tem
dificuldade em passar à prática. É sempre mais fácil falar do que agir. Perdeu
uma oportunidade. Não quer pensar que fosse “a” oportunidade. Mas, na verdade,
ela pensa isso. Pensa que aquela era a oportunidade dela. Pensa que falhou. E o
que mais deseja é poder voltar atrás no tempo. Que cliché. Poder fazer melhor.
Poder emendar os erros que cometeu. Poder fazer outro final. De preferência
feliz. Mas isto é tudo uma ilusão. Nada disto vai acontecer, mas custa-lhe
acreditar nisso. Esta ilusão toda prende-a aos poucos. E cada vez mais. Repetir
tudo again and again, sem fim, dentro
daquela cabecinha. Ter o coração sempre sufocado com toda esta situação. Não
lhe permite ser completamente feliz. Não lhe permite ser completamente livre.
Não lhe permite gozar completamente todos os momentos que a vida lhe traz a
cada dia. Um dia ela vai ter que mudar. Mas ela pensa que não consegue. Ela
está presa.
deixa-me-feliz#8
. jantaradas com novas e fantásticas pessoas
. ter dias em que ao chegar ao fim do dia estou contente e
penso: não estava à espera que fosse assim quando acordei
estória§153
Parece que estava lá de visita. Juntamente com mais pessoas. Ele
chegou e foi cumprimentá-la. Disseram ‘Olá’ e ela desviou a cara de modo a que
ele a beijasse na bochecha. Ele ficou algo admirado e questionou-a. Ela
encolheu os ombros. Ele virou-se e saiu-lhe da boca as palavras ‘Se fosse o
outro, não fazias isso’. Ela ripostou ‘então arranja outra’ e virou costas. Foi
à casa de banho. Tinha que andar em picos dos pés, o chão estava imundo.
Passado um bocado ele entrou e disse-lhe algo ‘Não pode ser assim’. Ela olhou
para ele, abraçaram-se e ele pegou-a ao colo. Foi um abraço apertado e que
ambos estavam a precisar. Ele perguntou ‘O que tens? O que se passou?’. Ela
respondeu ‘Tenho medo’. Ela tinha medo que não fosse verdade. Ele inclinou-se
para a beijar e ela não desviou a cara. Entretanto ouviram barulhos vindos da
sala e saíram da casa de banho. Entretanto, tudo se esfumou, como um sonho.
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